Dez anos depois de surpreender o mundo com a banda Gorillaz, composta de personagens que só existem como desenhos animados, Damon Albarn, o líder do grupo inglês Blur, apronta mais uma surpresa para a indústria musical. Boa parte dos instrumentos de The fall (EMI), quarto CD do projeto musical, não só é assinada pelos integrantes fictícios, como também foi gravada com instrumentos fictícios. As 15 canções que compõem o disco foram produzidas por Albarn com a ajuda de seu iPad. Ele criou The fall em quartos de hotel, em seu tablet, durante a turnê pela América do Norte do disco anterior do Gorillaz, o Plastic beach, de 2010.
As faixas que compõem The fall foram colocadas na internet no fim do ano passado, para download gratuito, e já antecipavam uma revolução na maneira de fazer música – algo que se cristalizou agora, com o lançamento do CD físico. Deixou de ser apenas experimental e passou a ser um produto.
Quando apareceu, em 1998, o Gorillaz conquistou a atenção da crítica pelas animações que substituíam os músicos nos shows e, principalmente, pela mistura poderosa de hip-hop e rock alternativo de faixas como “Clint Eastwood” e “19-2000”. Desta vez, o tom é outro. Apesar da participação de músicos como Mick Jones e Paul Simonon, do The Clash, e do cantor Bobby Womack (autor do hit dos Rolling Stones “It’s all over now”), as faixas são tão experimentais que mais parecem rascunhos. Essa precariedade é uma das facetas mais frequentes da modernidade artística. Se, por um lado, o brilho sonoro dos Gorillaz empalideceu, por outro o caráter de ensaio potencializa a importância do disco. The fall mostra que as experiências realizadas com celulares e tablets são válidas não só na internet, onde ficavam escondidas até agora, mas também na indústria da música.
Um caso anterior de experimentação de sucesso foi do Atomic Tom. O quarteto gravou um vídeo no metrô de Nova York em que interpreta uma de suas canções, “Take me out”, usando apenas iPhones. Quando a música foi lançada de modo tradicional no ano passado, como single, alcançou certa repercussão. O vídeo com os celulares já passa do meio milhão de acessos no YouTube.
No Brasil, a gravação do Atomic Tom inspirou o produtor carioca Daniel Farjoun a fazer sua própria versão de “Don’t worry, be happy”, sucesso de 1988 do americano Bobby McFerrin. Com alguns aplicativos para celular, como o ThumbJam, ele simulou violão, baixo e até instrumentos de sopro, como o saxofone, em uma interpretação instrumental da canção. A proeza foi gravada em um vídeo em que Farjoun aparece em seu estúdio “tocando” a música no aparelho. “Estou acostumado a trabalhar com o que há de melhor em tecnologia para gravação e quis testar o que o iPhone poderia me proporcionar”, disse ele.
A principal vantagem da gravação em tablets e celulares é a praticidade. Assim como Albarn, qualquer um pode gravar sua própria música a qualquer momento, em qualquer lugar. Em alguns casos, os instrumentos reais ainda são necessários e devem ser conectados ao tablet (leia o quadro ao lado). Em outros, o simples toque dos dedos produz música. É como poder carregar um estúdio inteiro de gravação dentro de um só aparelho.
O preço também é muito inferior ao de uma gravação profissional: o estúdio completo dos Gorillaz custou menos de US$ 90. “O tablet proporciona uma experiência mais realista que o computador”, diz Farjoun. Os aplicativos permitem que as cordas da guitarra e do baixo ou as teclas de um piano sejam “tocadas”. “É possível até produzir um vibrato (oscilação no som de uma nota) sacudindo o aparelho.”
A praticidade e o preço baixo têm impacto direto na qualidade da gravação, que é inferior à de um estúdio profissional. Os Gorillaz reduziram os danos com a mixagem de The fall em um estúdio profissional e a masterização no Abbey Road, em Londres. Depois de trabalhadas, as gravações ainda soam como uma representação computadorizada dos instrumentos verdadeiros, o que, no conjunto, não é necessariamente negativo.
Em 1975, o músico americano Lou Reed, ex-líder do influente grupo Velvet Underground, lançou o disco duplo Metal machine music. Ao longo de todo o álbum, tudo o que se ouvia eram barulhos, microfonias e distorções. Naquele tempo, fãs voltavam com o disco às lojas para devolvê-lo. Achavam que Reed havia enlouquecido ou feito uma piada de mau gosto. Com o passar do tempo, sua estética suja e barulhenta foi incorporada por bandas como a indie Sonic Youth e, mais recentemente, a psicodélica Animal Collective. Hoje, é impossível pensar em rock sem distorções e microfonias. The fall, portanto, parece um empurrão dos macacos dos Gorillaz rumo à evolução musical. O disco vai ser visto por muitos como uma excentricidade de Albarn. Daqui a alguns anos, poderá ser entendido como a pedra fundamental das gravações em tablets.
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