Vinte anos após libertação de Mandela, partido que o acompanhou ao poder enfrenta insatisfação popular por desigualdade social e criminalidade.
Nesta quinta-feira, quando se completaram 20 anos desde que o líder antiapartheid Nelson Mandela caminhou como um homem livre pela primeira vez após 27 anos na prisão, o presidente da África do Sul, Jacob Zuma, fez seu Discurso sobre o Estado da União. Mandela e sua mulher, Graça Machel, estavam presentes no pronunciamento, feito no Parlamento da Cidade do Cabo.
Não foi mera coincidência. No poder há nove meses, Zuma escolheu a data porque pretendia aproveitar a força do mito Mandela para pedir união da sociedade sul-africana em um momento de dificuldade para o governista Congresso Nacional África. Há 16 anos no poder, o partido ainda não cumpriu a promessa de superar o imenso legado econômico e social deixado pelo sistema de segregação racial.
Após a democratização sul-africana, alcançada por três anos de negociação entre Mandela e a minoria branca para culminar nas primeiras eleições multirraciais, em 1994, a África do Sul agora enfrenta o desafio de reduzir o desemprego, a criminalidade e a má qualidade da educação e da saúde. Quesitos nos quais a principal vítima continua sendo a maioria negra do país, que corresponde a 80% da população de 50,1 milhões.
Estudo publicado no ano passado pela Universidade da Cidade do Cabo indica que a África do Sul é o país com maior desigualdade social do mundo. E, como legado dos anos de segregação, a pirâmide social continua a mesma: os negros são mais pobres que os mestiços, que são mais pobres que os indianos e asiáticos, que são mais pobres que os brancos.
Segundo relatório do governo sul-africano, a renda mensal média dos negros aumentou 37,3% desde 1994. No caso dos brancos, porém, o salto foi de 83,5%. "Mesmo após o fim do apartheid, os negros ainda têm dificuldades para entrar no mercado de trabalho por causa dos anos de exploração e das deficiências no sistema educacional do país", disse ao iG Howard Stein, professor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Michigan, EUA.
Dirk Kotze, professor de Ciências Políticas da Universidade da África do Sul, concorda: "Nos últimos 20 anos, a desigualdade social cresceu em vez de diminuir. Esse é um dos desafios-chaves da sociedade sul-africana."
"Diamantes negros"
De acordo com estudo publicado em 2008 pela Fundação Stanley, dos EUA, o número de negros na classe média cresceu dramaticamente no país, de 300 mil em 2004 para 2,6 milhões em 2007, o que movimentou a economia e permitiu avanços na área de infraestrutura. Segundo Kotze, nas últimas duas décadas o governo conseguiu expandir o acesso dos sul-africanos à água potável e à eletricidade, que está presente em 80% dos domicílios.
Mas, apesar da ascensão dos chamados "diamantes negros" (apelido da classe média negra sul-africana), a grande maioria da população ainda sofre com a pobreza. "A África do Sul não tem uma vasta classe média com grande poder aquisitivo, como ocorre em países como o Brasil. Após o apartheid, a classe média cresceu, mas às custas principalmente de cargos em órgãos do governo", afirma Stein.
Desemprego e crime
Como consequência da crise mundial, que causou a primeira recessão da África do Sul em 17 anos, o país perdeu 770 mil postos de trabalho até setembro do ano passado, o que elevou sua taxa de desemprego a 25% (ou um em cada quatro sul-africanos em idade ativa).
Desse total, 75% têm menos de 35 anos. E, entre os sul-africanos com menos de 35 anos, 70% nunca trabalharam. Kotze, porém, acredita que a porcentagem de desempregados possa chegar a 40% se forem levados em conta os trabalhadores informais.
Para diminuir o desemprego pela metade até 2014, o governo diz que seria necessário um crescimento anual de 6%. Neste ano, o Tesouro Nacional sul-africano diz que a economia sul-africana deve crescer apenas 1,5%.
Para Kotze, o país está dividido em um sistema econômico e social "formal" e outro "informal". Como exemplo, cita o setor de saúde. "Desde 1994, o governo deixou de investir apenas em grandes hospitais e passou a introduzir centros comunitários", contou. "Com isso, mais pessoas estão recebendo atendimento médico, mas ele nem sempre é de boa qualidade", explicou.
Além disso, o falho sistema educacional contribui para a má qualificação de profissionais e permanece inadequado para promover uma real mobilidade social. O poder aquisitivo, conta Kotze, determina se uma criança estudará em uma escola bem estruturada ou em uma instalação precária. "A educação se tornou muito cara e ficou limitada a quem pode pagar", disse.
Como consequência das dificuldades socioeconômicas, o país sofre com o aumento da violência: cerca de 50 pessoas são assassinadas diariamente.
De acordo com o estudo da Fundação Stanley, por muito tempo os vários problemas do país foram tolerados pela população por gratidão ao CNA, já que o partido promoveu a liberdade política. Mas, atualmente, há aumento da insatisfação e de protestos nas áreas mais pobres. "A tensão é grande e a raiva entre a comunidade negra cresce rapidamente, enquanto a atuação do governo é cada vez mais decepcionante", afirmou Frans Cronje, do Instituto de Relações Raciais da África do Sul.
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