29/05/2010

O sabiá político

Do ano passado para cá, o setor canoro das árvores,
aqui na ilha, sofreu importantes alterações.
Aguinaldo, o sabiá titular e decano da mangueira, terminou
por falecer, como se vinha temendo.
Embora nunca se tenha aposentado, já mostrava
sinais de cansaço e era cada vez mais substituído,
tanto nos saraus matutinos quanto nos vespertinos,
pelo sabiá-tenor Armando Carlos, então grande promessa
jovem do bel canto no Recôncavo. Morreu de
velho, cercado pela admiração da coletividade, pois
pouco se ouviram, em toda a nossa longa história, timbre
e afinação tão maviosos, além de um repertório
de árias incriticável, bem como diversas canções românticas.
(...) Armando Carlos também morava na
mangueira e, apesar de já adivinhar que o velho
Aguinaldo não estaria mais entre nós neste verão, eu
não esperava grandes novidades na pauta das apresentações
artísticas na mangueira. Sofri, pois, rude
surpresa, quando, na sessão alvorada, pontualmente
iniciada às quinze para as cinco da manhã, o canto de
Armando Carlos, em pleno vigor de sua pujante mocidade,
soou meio distante.
Apurei os ouvidos, esfreguei as orelhas como se
estivessem empoeiradas.
Mas não havia engano. Passei pelo portão apreensivo
quanto ao que meus sentidos me mostravam,
voltei o olhar para cima, vasculhei as frondes das árvores
e não precisei procurar muito. Na ponta de um
galho alto, levantando a cabeça para soltar pelos ares
um dó arrebatador e estufando o peito belamente ornado
de tons de cobre vibrantes, Armando Carlos principiava
a função.
Dessa vez foram meus olhos incrédulos que tive
de esfregar e, quando os abri novamente, a verdade
era inescapável.
E a verdade era – e ainda é – que ele tinha inequivocamente
se mudado para o oitizeiro de meu vizinho
Ary de Maninha, festejado e premiado orador da ilha
(...).
Estou acostumado à perfidez e à ingratidão humanas,
mas sempre se falou bem do caráter das aves
em geral e dos sabiás em particular. O sabiá costuma
ser fiel à sua árvore, como Aguinaldo foi até o fim. Estaríamos
então diante de mais um exemplo do comportamento
herético das novas gerações? Os sabiás
de hoje em dia serão degenerados? Eu teria dado algum
motivo para agravo ou melindre? Ou, pior, haveria
uma possível esposa de Armando Carlos sido mais
uma vítima do mico canalha que também mora namangueira? Bem, talvez se tratasse de algo passageiro;
podia ser que, na minha ausência, para não ficar
sem plateia, Armando Carlos tivesse temporariamente
transferido sua ribalta para o oitizeiro. Mas nada
disso. À medida que o tempo passava, o concerto das
dez também soando distante e o mesmo para o recital
do meio-dia, a ficha acabou de cair. A mangueira agora
está reduzida aos sanhaços, pessoal zoadeiro, inconstante
e agitado; aos cardeais, cujo coral tenta,
heroica mas inutilmente, preencher a lacuna dos
sabiás. (...)

João Ubaldo Ribeiro O Globo, 14 fev. 2010. (Adaptado O Globo)

10 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom tudo o que João Ubaldo escreve.
É no que dá se apegar demais a êsses irracionais,rs. Tenho tantos sabiás em meu quintal, que às seis ou um pouco antes, não deixam mais ninguém dormir. Os meus são também fiéis às minhas goiabeiras e o meu limoeiro, mas nunquinha que eu pensaria em dar nomes prá êles! Já bsta a minha cadela com nome de mulher gente,rs. Olhe, vou pensar no assunto e quem sabe eu resolva chamar os sabiás mais antigos e mais frequentadores de minha varanda(roubando a ração da cadela), por nomes de políticos daquele partido, que falam demais, chamam muita a atenção do povo, mas só sabem dar bicadas na ração dos outros, e fazer sujeira(o chão da varanda) e só não fazem mais M se escondermos a ração.
Taí, o primeiro que eu encontrar alí fora se chamará...Zé Dirceu??
Helena

Humbertto Rodrigues disse...

Dijavan matreiro que é, lembrou do texto chave, usado no Concurso do Banco do Brasil ou foi da Caixa, já nem me lembro... rsrs

Dija Santos disse...

Foi usado no concurso do BB, aliás usei ele ontém na oitava aula do curso de formação política que teve a ética como tema...

Humbertto Rodrigues disse...

Tú tá mais perdido, do que eu... rs Fuiii

Mariana disse...

Desculpe, Dija, mas onde entrou a ética nessa sua aula? Se vc falasse em ingratidão, apêgo, em ecossistema,...ou estou mais perdida que vc e Beto, juntos?

Humbertto Rodrigues disse...

Estou perdido no sentido, de não lembrar em qual concurso o texto foi usado. Quanto a questão da ética. Dija, lhe responderá amanhã. Saudações Mariana, é sempre bom ve-la por aqui. Um abraço!

Dija Santos disse...

Respondendo a leitora Mariana: Companheira, no texto João Ubaldo Ribeiro, não trata só da questão da ingratidão da Ave, se você observar bem ele diz: ''Estou acostumado a perfidez e a ingratidão humanas.'' compara portanto a atitude da ave com a do ser humano, Não seria a ingratidão e a perfidez, exemplos clássicos de falta de ética??
Gostaria de explicar mais a relação do texto com a ética, mas não me alogarei. Espero que tenha entendido...

Mariana disse...

Desculpe, Dija, mas não penso assim.
Ética significa carater, define certos valores morais, mas não me parece que tenha algo a ver com gratidão. Ser ético não me parece ter necessáriamente algo a ver com gratidão. Se tem, se explique melhor, certo?

Humbertto Rodrigues disse...

Com a palavra, Dija Santos... rs

Dija Santos disse...

A ética é vista como um conjunto de regras de conduta. No meu conjunto, ser ingrato e pérfido(traidor) não é algo ético, talvez seja para você Mariana. Como trata-se de algo interpretativo proponho que terminemos aqui esse embate e cada um fique com suas convicções.