26/01/2011

Escutar o que se ouve

À primeira vista, o título acima conduz o despercebido leitor a cogitar um erro gravíssimo de redundância por parte do autor. “Como posso escutar aquilo que não ouço?”, podem questionar. Outros chegarão à filosófica conclusão de que “ouço, logo escuto”. Por fim, alguns dirão que ambos os termos são e sempre serão sinônimos, desviando a conversa para o resultado futebolístico do final de semana e encerrando, de forma drástica, a possível discussão. Embora sejam vistas por muitos como semelhantes, há significantes diferenças entre as duas palavras. Segundo o Dicionário Michaelis, ouvir remete a “dar ouvido às palavras de; perceber pelo sentido do ouvido”, ao passo que escutar refere-se a “prestar atenção para ouvir; dar atenção à; sentir; perceber”. Em suma: enquanto ouvir está ligado às funções auditivas, escutar envolve-se primordialmente com a atenção (e conseqüente compreensão) àquele que nos dirige a palavra.


Um breve caso auxiliará na elucidação dos conceitos. Certa vez, uma mulher retornou aflita de seu trabalho, necessitando dialogar urgentemente com o marido. Ao adentrar em casa, notou o esposo sentado no sofá, lendo seu respectivo jornal. Não demorou muito para iniciar seu desabafo, de forma atropelada e desorganizada. Qual foi a sua surpresa ao ser interpelada pelo marido da forma mais superficial possível, com fáticos “aham”, “que mais” e “certo”, mas sem desgrudar os olhos das páginas esportivas um minuto sequer. Tornando-se ainda mais desesperada, não se agüentou e arrancou o jornal das mãos do homem que, assustado, perguntou: “O que está acontecendo?”. “Acontece que eu estou a quase meia hora lhe falando das idéias malucas de nossa filha, que deseja viajar com o namorado para uma praia deserta, e você continua com essa expressão de que nada está acontecendo. Será que você está me escutando?”. Certamente a resposta para esse caso é “não”, pois ele realmente não escutou o que estava sendo dito. É possível que seu canal auditivo tenha captado as ondas sonoras provindas da voz da esposa, transmitindo o estímulo para o próprio organismo. Todavia, dificilmente tal estímulo transformou-se em alguma mensagem efetiva, afinal, nenhuma atenção foi desprendida pelo sujeito para torná-la consciente.

Pode parecer um exemplo distante, contudo, está mais presente no cotidiano das pessoas do que se imagina. Basta refrescar da memória a última vez que se encontrou com aquele amigo indesejado e pouco quisto, vulgo chato: é bem provável que, em meio a tanto desinteresse em manter a conversa, o interlocutor tenha se utilizado apenas dos ouvidos (quis respostas monossilábicas), sem envolver a escuta propriamente dita ou até mesmo, o mínimo de atenção. Outro exemplo dá-se costumeiramente nas salas de aula, em disciplinas que não interessem tanto a determinados alunos. Embora estejam olhando e ouvindo a figura do professor, seus pensamentos encontram-se há milhas de distância.

O movimento de escutar não é tão simples quanto se demonstra ser. Na atual sociedade, valoriza-se a máxima produção em detrimento ao menor tempo possível. Desta forma, pouco tempo é destinado ao exercício de escuta, uma vez que, na lógica pós-moderna, significa “perda de tempo”. Em vez de desprender de alguns minutos para dedicá-lo ao entendimento do próximo, prefere-se criar relações objetivas, mas superficiais, nas quais o contato está baseado mais no que cada um tem a dizer, ou seja, um “monologo dirigido”, ao invés de uma formação de diálogo.

Entretanto, existe alguém que pode servir de grande inspiração. Embora tenha partido há muito tempo, permanece vivo como exemplo a ser seguido: trata-se da pessoa de Jesus Cristo. Ele soube, de maneira única, estar inteiramente presente em todas as suas relações. Dificilmente será encontrada na bíblia alguma passagem que mostre Cristo conversando levianamente com o povo. Muito pelo contrário: Ele sempre está com uma posição corporal que permita olhar atentamente para o fiel, desprendendo toda a atenção que essa pessoa mereça. Jesus soube perfeitamente como escutar, cativar e compreender o próximo. Foi assim em todos os diálogos com seus apóstolos, com os dez leprosos, com Zaqueu e até mesmo com a adúltera. Independentemente daquele que se encontrava a sua frente, tratou todos de forma respeitosa e atenciosa.

Diante do que foi apresentado e tendo como exemplo vivo a figura do Filho de Deus, percebe-se a grande importância que o processo da escuta assume na vida dos seres humanos. É preciso ir muito além do simples ato de ouvir. Faz-se necessário, antes de tudo, esforçar-se para estar atento à transmissão do mundo interno daquele que fala, captando assim o valor essencial de sua mensagem. Espera-se que as pessoas estabeleçam vínculos de confiança, sabendo-se que só serão criados caso existam ligações verdadeiras de ambas as partes. A esse clima de fraternidade os psicólogos denominam de relação dialógica, isto é, um relacionamento verdadeiro formado por duas pessoas (eu-tu), na qual se encontram presentes em sua totalidade, dotadas de comunicação genuína e sem reservas. Por fim (e parafraseando o brilhante Rubem Alves), é preciso dizer: “existem muitos cursos de oratória, mas nunca alguém se preocupou em criar um curso de escutatória”. Está disposto a ser pioneiro nessa arte? “Sintaxe” à vontade!

Fonte: amaivos

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