Vanessa, jornalista de 29 anos, e Miriam, professora de 24, junto com suas outras duas irmãs, viveram submissas a seu pai durante anos. Sempre com medo de cometer algum erro – ou o que era visto como erro por ele – e com o pânico diante da certeza da represália. “Sempre tive medo do meu pai”, conta por telefone Beatriz, de 23 anos, que com sua mãe acaba de terminar um longo tratamento num centro para mulheres vítimas da violência machista e pelo qual também passaram há alguns anos as outras três jovens de vinte e poucos anos, e para onde voltaram uma manhã para contar sua experiência. Viveram num ambiente violento até que conseguiram fugir de seu carrasco. “Um homem que me foi imposto. A quem eu não escolhi”, afirma uma delas.
Seu caso não é único. Cerca de 800 mil crianças convivem com situações de violência de gênero na Espanha, segundo uma estimativa do Ministério da Igualdade – um número derivado da macropesquisa anônima sobre violência de gênero feita em 2008. Delas, cerca de 200 mil são filhos de mulheres com ordens de proteção. São vítimas e testemunhas que também sofrem por causa da invisibilidade que este rótulo traz e que podem chegar a sofrer sequelas muito palpáveis. “Depressão, transtornos de alimentação, ansiedade... A aprendizagem e a repetição do que veem em casa também acontece: agressividade no caso dos meninos e submissão no caso das meninas”, explica a psicóloga Beatriz Sevilla, especializada neste tipo de violência.
Até agora, este ano, 42 mulheres foram mortas pelas mãos de seus parceiros, 12 a mais que no mesmo período do ano passado. O balanço é alarmante. Mais ainda se levar-se em conta que três crianças foram assassinadas junto com suas mães, e 24 ficaram sem elas para sempre. É muito frequente que essas crianças se transformem também em vítimas diretas das agressões. “O maltrato aos filhos é uma das formas que o agressor encontra para fazer dano à parceira. Atacam sempre onde dói mais”, explica Miguel Lorente, delegado de Violência de Gênero.
Vanessa se transformou numa mulher forte. Já não tem medo e não suporta ouvir argumentos como “não o deixo por causa dos meus filhos” da boca de uma mulher maltratada. “Isso me dá muita raiva”, diz arregalando os olhos. Esta é sua mensagem para as mulheres: “não fique em casa por causa de seus filhos. Vá embora! Seus filhos não precisam de um pai assim”. Diz uma pessoa que não teve infância nem adolescência. Alguém que agora é mãe. “Se uma mulher se sente indefesa, que se coloque na pele da criança”, suplica sua irmã Miriam.
Ambas sabem que, infelizmente, este argumento não é incomum. Cerca de 16,6% dos espanhóis acreditam que se uma mulher fica com seu agressor ou o perdoa é por causa de seus filhos, segundo a pesquisa sobre percepção da violência de gênero realizada pela Igualdad. “É preciso conscientizar a população de que isso não é assim. De que permanecer nessa situação é pior para as crianças”, explica o delegado Lorente. Conscientes deste ângulo do problema, uma das primeiras campanhas contra a violência machista do ministério de Bibiana Aído tinha como tema a frase “Mamãe faz isso por nossa causa”. “A criança sofre pelo seu maltrato e o de sua mãe, que às vezes dói mais”, contam as irmãs Vanessa e Miriam. Elas, além disso, também foram vítimas diretas. Sofreram os abusos sexuais e estupros de seu pai durante anos. Nunca puderam contar nada. Ele gosta muito de caça, guardava em casa várias escopetas “sempre carregadas” e dormia com um revólver debaixo do travesseiro. Durante aqueles anos, nem podíamos nos consolar umas às outras. “Ele provocava intrigas, mentia, fazia todo o possível para que nós déssemos mal”, dizem. As agressões a sua esposa e os abusos e estupros de suas filhas renderam a ele uma condenação de 19 anos de prisão.
A ONG Save the Childern, que em 2006 elaborou o informe “Atenção aos meninos e meninas vítimas da violência de gênero”, insiste que deve ficar claro que os filhos que vivem a violência de gênero no lar também são vítimas desse rótulo. “Ainda que não a sofram diretamente ou não a vejam, sua vida fica marcada para sempre e precisam de atenção especializada para recuperar-se”, diz Yolanda Román, diretora de campanhas da ONG. Ago que nem sempre acontece.
A ONG e a Fundação IRes calculam que só 4% dos menores que viveram situações de violência de gênero recebem esta ajuda. “Normalmente, quem é atendida é a mulher, e através dela os menores”, explica Fe Paz, diretora de um dos centros de atenção às mulheres da Federação de Mulheres Separadas e Divorciadas, que assegura que esta carência se dá porque em muitos casos, para atender a criança, é necessária a permissão de ambos os progenitores. Um ponto do qual a Igualdad discorda. “Pode-se recorrer ao juiz ou a serviços sociais se for considerado que a criança precisa de atenção”, argumenta Lorente.
Román reconhece que muito se avançou, mas que os filhos ainda são “um acréscimo, uma variável com a qual muitas vezes não se sabe o que fazer”. A Save the Childern se preocupa com o fato de que algumas comunidades não admitam as crianças maiores de 12 ou 13 anos nos centros de atenção a mulheres. “Eles os separaram, levam a centros de menores. É terrível”, diz Román. A especialista ressalta que o mais alarmante é que a atenção que recebem os filhos das vítimas de violência machista depende da região onde vivem. Por isso pede que se garanta uma resposta mínima homogênea em todo o país.
Esta opinião é compartilhada por Consuelo Abril, porta-voz da Comissão para a Investigação dos Maus-Tratos para o Congresso, uma organização de especialistas e juristas. Esta advogada sustenta, além disso, que ainda há grandes carências na atenção às crianças. Ainda que apareçam na Lei Integral de Violência de Gênero de 2005, os menores não estão suficientemente contemplados nela, sustenta. Para Abril, a chave é a “recuperação”. É uma questão prioritária trabalhar com esses menores para que, além de se curarem, não voltem a repetir os papeis que viveram”, explica. Lorena conta que os episódios de violência que sofreu em casa a transformaram numa pessoa dócil e desconfiada em relação aos homens. “Se desde pequeno você é educada assim [num ambiente violento], você acha que é o normal”, diz ela.
Pouco a pouco, dia a dia, a crueldade de quem maltrata faz uma grande ferida nas crianças. Um exemplo disso é visto no informe da Save the Children de 2006: “Um menino de dois anos chamava sua mãe de 'puta' porque achava que era o nome dela, porque o pai a chamava assim”. Beatriz lembra de algo muito parecido: “meu pai chamava minha mãe de imbecil e dizia que não é era um insulto”. Quando era pequena a jovem acreditava que os adultos não se beijavam. “A primeira vez que vi os pais de uma amiga se beijando, pensei: 'os pais dela são diferentes dos meus'”, conta.
Lorena e Beatriz – filhas únicas – não conhecem Vanessa e Miriam. Nunca falaram entre si. Suas histórias, entretanto, e alguns de seus gestos, têm muito em comum. Seus pais pressionaram, intimidaram e forçaram até conseguir que suas famílias se isolassem do mundo. “É o mesmo que fazem com as mulheres, as separam de seus amigos, de suas famílias, de todo seu entorno para que fiquem sozinhas e dependentes. Para que não tenham ninguém a quem recorrer e pensem que não têm nada”, explica Paz.
Vanessa, Miriam e suas irmãs nunca foram à casa de seus colegas de escola. “Não podíamos ir à casa de ninguém nem eles podiam vir na nossa. Nem mesmo para fazer um trabalho em grupo”, conta Miriam. As ordens eram claras: do colégio para casa. Assim como para Lorena. Seu pai havia cronometrado que levava só dez minutos para chegar da porta de casa até a escola. “Eu não podia demorar nenhum minuto a mais”. Uma vida sem amigas, isolada. “Só lembro de ir ao parque com meus avós. Não tinha mais ninguém. Vivia numa bolha”, diz Lorena.
Miriam relata que em sua casa não havia nem brinquedos ou presentes em seus aniverários. “Nosso pai não dava umas surras de morte. Mas não fazia falta, ele nos maltratava psicologicamente”, dizem as irmãs. Estavam totalmente anuladas. “Até que um dia decidi parar de comer”, conta Vanessa cruzando os braços com resolução. “Pensei: 'não como, morro e pronto'”, diz ela. Foi isso que fez com que sua mãe se desse conta de que, além das surras constantes que ela sofria, seu carrasco também estava maltratando suas filhas.
Assim, vieram à tona as violações. E as cinco mulheres se foram. As irmãs, sentadas num sofá, olham uma para a outra. Faz oito anos que fugiram. Refizeram suas vidas e são felizes. Miriam sorri ao lembrar um detalhe que agora parece surrealista. “Antes de irmos, minha mãe deixou o jantar pronto para meu pai. E dinheiro, caso precisasse”, conta. “Essas mulheres não são vítimas, são sobreviventes”, diz Paz. Ela sabe disso muito bem. Todos os dias vê casas como o dessas quatro mulheres. “A capacidade de se recompor do ser humano é imensa”, diz.
“Quantas crianças estão vivendo esse horror sem que ninguém saiba?”, pergunta-se Abril, que diz que é preciso fomentar os mecanismos de detenção e prevenção da violência de gênero. O delegado para violência de gênero explica que os professores e os médicos de pronto socorro têm um papel fundamental. Miriam, que agora é professora, também vê o assunto do outro lado, e explica que é possível ver alguns indícios. “É preciso abrir os olhos. Se uma criança se comporta de forma estranha, se ela se isola de seus colegas, não faz os trabalhos ou não traz os livros, se nunca se dá bem com ninguém... é preciso investigar por quê”. Em seu caso ninguém se deu conta. Tampouco no caso de Lorena. Elas também não podiam contar nada.
“É muito difícil dizer nada. Você também fica cega, porque é seu pai, imagina-se que ele deve gostar de você”, diz Lorena. Beatriz esteve a ponto de chamar a polícia: “Marquei o telefone milhares de vezes. Mas não liguei. Se o levassem à delegacia o que aconteceria depois? Dão uma solução imediata, mas você precisa de uma que te salve a vida”. Não pode evitar um soluço audível do outro lado do telefone a ser questionada sobre seu pai: 'por mais terapia psicológica que eu faça, me tiraram o direito ao carinho do meu pai. E isso foi decisão dele.”
Muitas vítimas só começam a viver sua vida depois da reabilitação. Lorena aproveitou como nunca durante umas férias com suas amigas em Tenerife. De repente, sair à noite ou desligar o celular era a felicidade. “É como se eu vivesse de verdade pela primeira vez.”
A Igualdad e as comunidades autônomas da Espanha assinaram um convênio para dedicar mais fundos para o cuidado com os filhos das vítimas da violência machista. O ministério estuda, além disso, fórmulas jurídicas para que a retirada da custódia dos filhos seja automática dos homens que maltratam e são condenados. Algo que Abril considera fundamental e que estava entre as propostas de melhoria da lei integral que a comissão de Violência e Gênero do Congresso envio para a Igualdad. Lorente esclarece que agora os juízes podem retirar a custódia. “Trata-se de simplificar a fórmula. A custódia deve ser exercida sempre em benefício do menor. As crianças se veem enormemente afetadas pela violência. Precisam tomar distância dessa situação”, diz.
Vanessa e Miriam temem o dia em que seu pai saia da prisão. O pai de Beatriz é obrigado a manter uma distância de um quilômetro dela, e ela tem um telefone de emergência. O de Lorena morreu. “Dá uma tranquilidade de certa forma porque era ele ou eu. Mas de certo modo também o amo.”
Fonte: amaivos
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