15/05/2011

Dica de leitura: Renato Russo, o filho da revolução

Nenhum homem vive solto no tempo e no espaço. Muito menos o gênio paira acima das coisas terrenas. Embora tenha nascido no Rio de Janeiro, Renato Manfredini Jr. tornou-se Renato Russo num tempo e num espaço precisos, de meados da década de 70 a meados da década de 80, em Brasília. O líder da Legião Urbana, conjunto de rock mais popular da história do país, não poderia ter emergido de outro momento ou lugar. Jornalista em Brasília, como Renato foi um dia, Carlos Marcelo rastreia a energia criadora do ídolo pela cidade. Com finíssimo texto e colossal apuração, ele reconstrói a Brasília da Turma da Colina. Que cidade linda, tediosa e insurgente. Partida e chegada do seu inquérito sobre Aborto Elétrico, Trovador Solitário, Legião, heterônimos que Renato – with a great help from his friends – criou no decorrer de seus 36 anos de existência. De um lado, vivia-se sob um céu fechado: a metade final da ditadura militar implantada pelo golpe de 1964. Do outro lado, avistava-se um horizonte ilimitado: tão ou mais característico que os prédios de Niemeyer na cidade inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek em 1960, mesmo ano em que Renato nasceu. Foi dessa dialética entre fechamento e abertura que o artista, antena de TV da raça, captou forças (e fraquezas) para retransmitir ao Brasil hinos informais como “Que país é este” e “Perfeição”. Contudo, e esta é uma das delícias do livro, Renato Russo não é filho único daquilo que os militares chamavam de revolução. Carlos Marcelo invoca sua Geração Coca-Cola, evoca o prazer de se fazer amigos e músicas, e de se influenciar multidões, nos anos 70/80. Assim, por instantes, Renato Manfredini Jr. se torna quase coadjuvante da própria história. Como Bob Dylan nos filmes de Martin Scorsese. Renato Russo adoraria essa comparação.

Trechos do livro:

Muitas vezes Renato ia a pé para uma das oito salas de cinema, instaladas no Setor de Diversões Sul. Já no Cine Karim, viu pela primeira vez o documentário Monterey Pop, com performances de Otis Redding, The Who e Jimi Hendrix. Um dia chamou o amigo Gustavo para ir até a maior sala da cidade, o Cine Atlântida. Queriam ver O exorcista, considerado o filme mais aterrorizante dos últimos tempos, expressamente proibido para menores de 18 anos. Franzinos, os garotos imberbes sabiam que seriam barrados na entrada. Não tiveram dúvidas. Subornaram o porteiro e conseguiram entrar. Sentaram na primeira fila. Não tiraram o olho da tela. Voltaram conversando sobre as cenas mais fortes de possessão da menina Regan pelo demônio. No dia seguinte, Renato confessou a Gustavo:


- Não consegui dormir, fiquei a noite inteira acordado.


Nas idas ao cinema ou ao curso de inglês, Renato Manfredini Júnior tentava apreender os segredos de Brasília. Mistérios que ainda causavam espanto tanto para os moradores quanto para os visitantes. "Parece incrível que Brasília, ao completar seu 14o aniversário como sede do governo da República, ainda esteja sujeita a periódicas crises de falta de confiança para cumprir os altos desígnios de seus construtores", observou o jornalista Tão Gomes Pinto em reportagem de capa da revista Veja, publicada em abril de 1974. Três meses depois, ao cumprir a promessa feita em 1962 e regressar à cidade, Clarice Lispector registrou no Jornal do Brasil a angústia de 48 horas transcorridas no Planalto: "Brasília é o mistério classificado em arquivos de aço. E eu, quem sou eu? Como me classificaram? Deram-me um número? Sinto-me numerificada e toda apertada."


Brasília é um futuro que aconteceu no passado. É o fracasso do sucesso mais espetacular do mundo. Brasília é uma estrela espatifada. Estou abismada.


Após afirmar ter voltado para o Rio de Janeiro "irremediavelmente impregnada por Brasília", Lispector confessou: "Prefiro o entrelaçamento carioca." Talvez porque as ruas da capital carecessem da capacidade de sintetizar a "expansão de todos os sentimentos da cidade", na célebre definição de João do Rio (1881-1921). Não tinham nascido "como o homem, do soluço, do espasmo" e por isso jamais poderiam ser consideradas "a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas", como definiu o cronista em sucessão de textos publicados entre 1904 e 1907, pouco depois de a cidade fluminense se tornar a capital federal. Pelo contrário: as quadras brasilienses, apesar de parecidas no traçado, tinham ocupação estratificada de acordo com a atividade profissional dos moradores. Algumas exclusivas para parlamentares, outras para militares graduados, outras ainda para funcionários públicos - e os filhos dos ocupantes reproduziam fielmente, muitas vezes de forma violenta, a rígida hierarquia habitacional.


Renato sabia, por exemplo, que deveria tomar cuidado ao adentrar quadras vizinhas. Magro e baixinho, podia ser considerado vítima em potencial das constantes brigas entre jovens, muitas surgidas sem motivo aparente, quase sempre quadra-contra-quadra. Delimitação de território. A turma da 303 Sul, por exemplo, saiu várias vezes no braço com o pessoal da 305. A briga mais séria ocorreu depois que uma menina da quadra do Banco do Brasil foi abordada pela turma rival. Um cara da 303 partiu para cima dos invasores, que fugiram. Depois, montados em motos, garellis e mobiletes, voltaram com porretes e pedaços de pau. As duas turmas se juraram; o clima de tensão permaneceu por meses a fio. Muitas peladas na 303 acabaram após o alerta:


- Lá vem os caras da 305!


Todo mundo saía correndo, cada um para sua portaria, até cessar o perigo.


Além da violência latente, o sentimento de impunidade estava impregnado no cotidiano do Plano Piloto. Na entrada do Marista e de outros colégios como La Salle e Dom Bosco, uma procissão de carros oficiais se formava diariamente para levar e trazer os filhos de políticos e autoridades do governo. Dodge, Opala, Aero Willys, Galaxie... Carrões facilmente identificados pelas letras iniciais da placa (OF) e imunidade garantida por decreto:


- Os carros destinados aos serviços das altas autoridades da República são considerados de representação, identificados por chapas especiais, e isentos da fiscalização de uso.


Em Brasília, se todos eram igualmente imigrantes, uns podiam ser bem mais iguais que os outros. Estavam protegidos pela lei e pela função exercida. Até os motoristas viravam autoridade. Um deles, ao ser flagrado por uma equipe de jornalistas com o Dodge chapa-branca parado em frente ao colégio La Salle, ameaçou.


- Fotografou, apanhou.

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