10/02/2012

O Poeta Continua Aqui

"Se eu tenho medo que me esqueçam? Não;
eu estou com o público e ele está comigo."
Renato Russo


Ao longo dos 12 anos em que se manteve entre os primeiros lugares nas paradas de sucesso, o cantor e compositor Renato Russo, líder do grupo Legião Urbana, consolidou a fama de excelente letrista, intérprete sensível e pensador polêmico, conquistando milhares de admiradores em todo o país. Indiscutivelmente, formou com Cazuza a mais brilhante dupla de poetas surgida no balanço do Rock Brasil, cujos contornos se tornaram mais nítidos no início da década de 1980.

Renato nasceu no Rio de janeiro, em 27 de março de 1960. Morou vários anos com a família em Brasília, onde se formou em jornalismo. Antes de chegar ao show business, foi repórter e lecionou inglês. Apreciador dos escritores românticos e dos poetas ingleses, Renato Manfredini júnior era um leitor voraz. Por sinal, adotou o "Russo" de seu nome artístico em homenagem ao pensador francês Jean-Jacques Rosseau, ao pintor Henri Rousseau e ao matemático e filósofo inglês Bertrand Russel. A sua bagagem cultural haverá de ter sido um dos fatores que o levaram a se tornar um referencial de qualidade intelectual entre os roqueiros nacionais. Outra característica importante era o apuro estilístico de que não abria mão, quando se tratava de produzir alguma nova composição. A letra de "Índios", um dos hits do disco Dois (1986), por exemplo, levou mais de um ano até ser considerada pronta.

Renato Russo começou a se embalar definitivamente entre os acordes distorcidos das guitarras no final dos agitados anos 70, na Capital Federal, com o grupo Aborto Elétrico - experiência punk substituída pelo Legião Urbana, que formou com Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato Rocha, o Negrete (que logo depois se desligou do grupo). O primeiro LP, homônimo à banda, lançado em 1984, emplacou sucessos até hoje executados nas rádios, como "Soldados", "Ainda é cedo" e a já clássica "Geração Coca-Cola". As canções tinham ritmo, harmonia e melodia de fácil assimilação, e eram - todas - complementadas por letras que destoavam das trivialidades e irreverências juvenis de certos grupos de rock.

Enquanto a banda conquistava mais e mais fãs, Renato ia marcando presença no cenário musical não apenas como letrista e cantor, mas como cidadão participante. Suas sempre instigantes, às vezes controversas visões de mundo, suas multifacetadas experiências de vida, sua luta contra os excessos de álcool e drogas e sua condição de homossexual assumido tudo isso delineou, ao lado de uma genuína rebeldia, o mito Renato Russo. Que sempre tinha o que dizer sobre política, comportamento, música, literatura e, claro, o trinômio sexo, drogas e rock' n 'roll. Nada escapava ao crivo de suas opiniões, impregnadas de traços que conformavam o imaginário das frações mais críticas e indignadas (nem por isso menos românticas) de sua geração. E não ficava apenas no discurso por uma sociedade mais justa e fraterna. Os encartes de discos incluíam páginas com a divulgação de entidades humanitárias e de defesa de minorias. Em 1994, ele doou metade da receita obtida com a venda do CD The Stonewall celebration concert para a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, liderada pelo sociólogo Herbert de Souza (Betinho).

Renato Russo morreu no Rio de janeiro, em 12 de outubro de 1996, por complicações decorrentes da Aids. Segundo um dos médicos que o assistiam, era soropositivo desde 1990. Ao contrário de Cazuza, Renato jamais admitiu publicamente ser portador do vírus HIV. Mas nos, belos versos de "A via-láctea", incluída no CD A tempestade, ele traduziu - numa auto-referência poética, já presente no título do disco - o sofrimento que por certo lhe varava a alma:

"Quando tudo está perdido/Sempre existe um caminho / Quando tudo está perdido / Sempre existe uma luz / Mas não me diga isso / Hoje a tristeza não é passageira / Hoje fiquei com febre a tarde inteira / E quando chegar a noite / Cada estrela parecerá uma lágrima / Queria ser como os outros / E rir das desgraças da vida / Ou fingir estar sempre bem / Ver a leveza das coisas com humor / Mas não me diga isso / É só hoje e isso passa / Só me deixe aqui quieto / Isso passa / Amanhã é um outro dia não é / Eu nem sei por que me sinto assim / Vem de repente um anjo triste perto de min / E essa febre que não passa / E meu sorriso sem graça não me dê atenção / Mas obrigado por pensar em mim / Quando tudo está perdido / Sempre existe uma luz / Quando tudo está perdido / Sempre existe um caminho / Quando tudo está perdido / Não quero mais ser quem eu sou / Mas não me diga isso / Não me dê atenção / E obrigado por pensar em mim."

Renato passou os últimos dias recluso em seu apartamento numa rua arborizada de Ipanema, acompanhado apenas pelo pai e por um enfermeiro. já se recusava a prosseguir um tratamento à base de coquetéis de drogas. Seu corpo foi cremado, conforme ele desejava, e as cinzas espalhadas nos jardins do paradisíaco sítio do paisagista Roberto Burle Marx, na zona oeste da cidade.

A expressiva discografia do Legião Urbana inclui: Legião Urbana (1984), 550 mil cópias; Dois (1986), 1,1 milhão de cópias; Que país é este (1987), 770 mil cópias; As quatro estações (1989), 1,1 milhão de cópias; V (1991), 465 mil cópias; Música para acampamento (1992), 270 mil cópias; O descobrimento do Brasil (1993), 430 mil cópias; Por enquanto (uma retrospectiva, em seis CDs), 20 mil cópias; A tempestade ou O livro dos dias (1996), 400 mil cópias. Renato gravou ainda dois trabalhos solo: The Stonewall celebration concert (1993), cantado em inglês, que vendeu 200 mil cópias; e Equilíbrio distante (l995), interpretado em italiano, 550 mil cópias.

A obra de Renato Russo - um legado de genialidade poética e de integridade artística - permanecerá atual, influente e inesquecível. Principalmente para aqueles tantos homens e mulheres que, como ele, crêem que "é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã".

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